Evolução da IA já transforma auditoria médica, mas capacitação e interoperabilidade são desafios
Tecnologia acelera processos de análise no campo da auditoria médica, mas exige revisão humana
Por Angélica Weise
20/08/2025
A inteligência artificial já integra diversas áreas da saúde e vem transformando também a auditoria médica. Análises que antes levavam semanas hoje podem ser realizadas quase em tempo real, com mais precisão, padronização e capacidade preditiva. Além de acelerar processos e aumentar a acurácia, a IA reforça o debate sobre custo-efetividade, apontando para um sistema de saúde mais eficiente, sustentável e centrado no paciente.
Essa transformação fica mais visível ao olhar para os processos de auditoria médica antes da chegada da IA. A avaliação técnica e administrativa da prestação de serviços de saúde era predominantemente manual, baseada em planilhas e documentos isolados. Revisões de prontuários, conferência de procedimentos e validação de reembolsos levavam dias para serem consolidados. Hoje, a inteligência artificial permite ganhar velocidade e precisão na análise. Ela identifica padrões, antecipa riscos e automatiza tarefas, apoiando na tomada de decisão de procedimentos, tratamentos e gastos estejam de acordo com diretrizes médicas, normas e contratos estabelecidos.
Quem potencialmente pode se beneficiar desse uso são os cerca de 830 médicos auditores certificados no país, segundo a Sociedade Brasileira de Auditoria Médica (SBAM). Esse assunto foi um dos temas do 4º Congresso Brasileiro de Auditoria Médica, realizado em Salvador entre 14 e 16 de agosto, que reuniu especialistas para discutir os desafios e as inovações da auditoria digital.
Dentre os benefícios da digitalização, estão a melhoria da experiência do paciente, a ampliação da confiabilidade das informações e o fortalecimento da governança em saúde. Já os desafios apontados abrangem a necessidade de preparo técnico, a interoperabilidade entre sistemas e, no caso específico da inteligência artificial, o acompanhamento profissional constante das tarefas realizadas pela tecnologia na análise de processos.
Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, que participou de painel no evento, lembrou que a aplicação da inteligência artificial já está acontecendo em áreas como judicialização, compras de medicamentos e análise de grandes bases de dados para detectar anomalias e otimizar processos. Também detalhou os esforços da pasta para estruturar a transformação digital do SUS desde a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital em 2023. “A transformação digital tem camadas: infraestrutura, conectividade, interoperabilidade”, explicou. Ela lembrou ainda que o sistema público opera com mais de 400 plataformas e que iniciativas como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e o SUS Digital já avançam na integração e no fortalecimento da informação em saúde.
Os especialistas também destacaram desafios estruturais do sistema de saúde, como o envelhecimento populacional e o aumento constante dos custos assistenciais, que pressionam tanto o SUS quanto a saúde suplementar. Nesse contexto, a inteligência artificial e a auditoria médica digital aparecem como ferramentas estratégicas para melhorar a eficiência, desde que operem dentro de marcos regulatórios claros e sejam combinadas à capacitação profissional e à gestão responsável dos dados.
Redução de custo e alfabetização digital
“Qual o benefício da auditoria médica? Eficiência, redução de custos, maior precisão e escalabilidade”, afirma Sérgio Antonio Dias da Silveira Junior, médico nefrologista e diretor científico da Sociedade Brasileira de Auditoria Médica. Ele também ressaltou, durante sua fala, os ganhos de padronização e previsibilidade. Para ele, os resultados nem sempre coincidem com a expectativa individual dos pacientes, mas oferecem respostas oficiais e consistentes para a tomada de decisão.
Um exemplo concreto citado por ele foi a simplificação de um processo de reembolso, que caiu de 16 para apenas quatro etapas, com o tempo médio reduzido de 26 dias para um dia e meio. O médico ponderou, no entanto, que a qualidade depende da consistência dos dados e da validação correta dos processos. Também chamou atenção para o papel do fator humano: aspectos emocionais e psicológicos influenciam a decisão dos auditores, tornando indispensáveis a supervisão profissional, a transparência e a formação contínua. Hoje, 17% dos médicos já utilizam ferramentas generativas em sua prática. “O delírio tecnológico acontece quando se espera que a IA substitua a expertise médica. Ainda assim, o maior risco seria não utilizar a ferramenta”, disse.
Já Fabrício Machado, diretor de incorporação tecnológica da Prevent Senior, refletiu sobre a velocidade da evolução tecnológica e seu impacto direto na prática médica. Ele destacou que modelos de linguagem, como o GPT, já são capazes de gerar relatórios, apoiar análises complexas e identificar padrões que passam despercebidos pelo olho humano. “É fundamental aprender inteligência artificial. E, mais do que isso, precisamos aprender a aprender. Isso está evoluindo muito rápido”, afirmou.
Embora reconheça riscos como respostas inconsistentes ou falhas de base de dados, o especialista reforçou que não utilizar a tecnologia pode ser ainda mais arriscado, já que ela aumenta a eficiência e a precisão em tarefas repetitivas. Para ele, dominar a IA exige educação continuada, compreensão clara das funções que cada sistema realiza e responsabilidade plena do profissional. A tecnologia deve sempre ser um aliado estratégico — e nunca substituto — da expertise médica.
Próximos passos da auditoria médica
O futuro da inteligência artificial aplicada à auditoria médica envolve fortalecer marcos regulatórios para o uso dessas ferramentas. Assim, um conjunto robusto de normas tem o potencial de alavancar a integração da IA com a auditoria digital e, assim, impactar a eficiência do sistema de saúde. Para isso, os especialistas afirmam que é essencial que as tecnologias operem segundo padrões de segurança, transparência e ética.
Para Rogério Scarabel, ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e sócio da M3BS, o auditor se torna um gestor de valor, com um papel estratégico. “A inteligência artificial não substitui, mas potencializa o seu trabalho, dando a ele um protagonismo interno extremamente relevante”, afirmou. Segundo ele, os principais desafios estão na integração dos bancos de dados, na transparência regulatória e no combate a manipulações que possam comprometer a credibilidade científica.
Essa perspectiva também aparece na fala de Martha Oliveira, CEO do Grupo Laços, que enxerga a inovação tecnológica como uma ferramenta que exige que os profissionais assumam novos papéis, como o de análise de dados e tomada de decisão. Alertou que o avanço é inevitável e que é responsabilidade dos profissionais da saúde garantir que a mudança seja implementada com consciência e capacitação adequada, sempre com foco no impacto real sobre os pacientes.
Além disso, Clarice Alegre Petramale, consultora médica da Unimed, mencionou a importância de se dar inputs confiáveis para a inteligência artificial no processo de análise de auditoria médica. “A IA não vai ajudar nada se não tiver parâmetros para trabalhar: dados confiáveis de custos, segurança e evidências científicas são fundamentais para que a tecnologia realmente contribua para a saúde da população.” Já Angélica Carvalho, diretora-adjunta de Desenvolvimento Setorial da ANS, destacou a importância da interoperabilidade entre sistemas e dos algoritmos terem supervisão humana e pautados por critérios técnicos e científicos.
Segundo especialistas, os próximos passos para um sistema de saúde mais eficiente envolvem proteger os pilares do SUS e garantir que as novas tecnologias respeitem limites legais, éticos e econômicos. “Com segurança, com a lei de proteção de dados, eu acho que vamos conseguir avançar o SUS. Mas nunca se desviando dos pilares estruturantes da saúde”, finaliza Petramale.
Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.